Silêncios
O convite aberto permanecia na mesa de seu escritório entre as pastas de diversos contratos. Naquela manhã, observou a qualidade do papel e a letra tradicional em relevo. Por um instante a semelhança com o convite do casamento deles o fez sorrir. Familiar e ao mesmo tempo estranho, o conteúdo daquele envelope com o lacre das iniciais dos noivos trazia o desejo insólito de sua presença no casamento de Isabel: as segundas núpcias de sua ex-mulher.
A separação aconteceu de uma forma quase lógica para quem buscasse sentido no encadeamento dos fatos. A distância desenhada pelos anos, o desejo anestesiado de seus corpos e o tempo que consumiu a vontade de falarem. Um deserto ocupou lentamente o espaço do que teriam a dizer um ao outro. Nem prazer ou tensão nas palavras. Os diálogos domesticados pelo cotidiano. Tudo era morno, sem gosto e igual.
Isabel e Guilherme, uma espécie de roteiristas a abandonar sua história, deixaram a vida em suspenso como se não enfrentar algo significasse sua inexistência. Precisavam dos outros para suportar uma forma de solidão a dois. Escolhiam casais que, assim como eles, preferiam não ver a si mesmos e para isso preenchiam os dias com enredos no palco, na tela, nas cidades turísticas e nos lugares públicos.
Houve um tempo em que recorreram à terapia de casal. A irmã de Isabel salvara assim seu casamento e era interessante observar que apenas isso a motivava: fazer igual e, se possível, melhor do que a irmã. A mulher parecia mais interessada em competir do que em resgatar a união. Se havia dado certo com Sandra, teria que funcionar para ela, apesar de serem dois a contar aquela história.
Enquanto durou a terapia, Isabel se comportava como uma diretora de cinema irritada com as cenas que não transcorriam da maneira idealizada. Suas vidas haviam se transformado em um filme que teria que fazer sentido a qualquer custo. Então, passou a representar muitos papéis. Foi uma esposa calada, mas atenta e dedicada. Depois de algum tempo, uma companheira ativa e preocupada com tudo. Numa outra fase, uma mulher ressentida embora aberta a rever-se por completo. Porém, nenhuma das personagens explicava sua dor.
Isabel insistia em ignorar que a vida não era um roteiro de cinema onde tudo é alinhado com o único propósito de fazer sentido. As fases, os desencontros, os tormentos, as conquistas, o final feliz ou não, pouco importa. O que conta em um filme é a sucessão de acontecimentos costurados pelo sentido artificial. A vida desconhece essa linha condutora pré-fabricada. O esforço pode ter o mesmo peso do acaso que imune a qualquer interferência, acontece sem razão alguma.
Por outro lado, Guilherme exercia o papel de coadjuvante neste cenário, desconectado de si mesmo. O casamento deixou de ser uma causa para lutar e tornou-se um problema que a cada dia roubava ainda mais o sentido de sua vida. Permanecia ali como poderia estar em um milhão de outros lugares, mas nada fazia para mostrar a Isabel que na tela onde os dois apareciam já era possível ler os créditos com seus nomes a indicar o fim.
Naquela tarde, em uma sessão tumultuada, ele não conteve as lágrimas. Era a segunda vez que chorava em sua vida. Sentia que nada poderia traduzir o nó em sua garganta. Afrouxou a gravata e desajeitado passou as mãos na face molhada.
A pergunta da terapeuta cortou o ar pesado:
- Isabel, quem é Guilherme?
A mulher, a princípio apenas constrangida com a reação emotiva do marido, olhou-o espantada como se pela primeira vez tivesse notado que sua presença era real. Guilherme desviou o olhar. Era patético perceber que ele e suas vontades haviam se tornado entidades desconhecidas de sua esposa.
Isabel o surpreendeu ao dizer: - eu não o conheço mais para saber.
A terapeuta repetiu a questão para Guilherme. O marido não disse nada. E ainda que desejasse falar, todas as palavras do mundo não bastariam.
O toque do interfone interrompeu suas lembranças. O convite ainda estava em suas mãos quando, num ato reflexo, autorizou que a secretária passasse a ligação. Em seguida, ouviu a voz da mulher repetir seu nome:
- Guilherme? Você vem para o meu casamento?
Depois de uma breve pausa, ela insistiu:
- Posso confirmar sua presença?
Do outro lado da linha, o peso do seu silêncio era a única resposta.
Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 09/04/2009
Alterado em 26/09/2009