DOLCE VITA
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Canastrão



A agenda aberta sobre a mesa mostrava que setembro havia chegado. Letícia olhou os compromissos anotados, mas sua atenção estava voltada para o que a aguardava fora do escritório. Após dois meses de espera, finalmente, iria reencontrá-lo no final da tarde. Pensou em sair mais cedo do trabalho e arrumar o cabelo. Em plena segunda-feira sentia gosto de sábado.

O telefone tocou muitas vezes naquele dia, embora a única voz que ela quisesse ouvir fosse a dele. Fechou um contrato, redigiu duas propostas até que decidiu ir embora. Antes de sair, avisou a secretária:

- Diga ao Renato que só volto amanhã. Preciso resolver um assunto particular.

Sueli, sem erguer os olhos da tela do computador, respondeu:

- Você já conhece o homem! Ele não vai gostar! E quem escuta, sou eu! Terei que ouvir suas reclamações até amanhã!


- Até amanhã!

O tom irônico não escondia o carinho que sentia pela secretária. Em outros momentos, sua cumplicidade havia suavizado algumas de suas piores tardes ali.

Letícia respirou fundo e acenou antes de sair. Enquanto dirigia pela avenida congestionada e parava em cada esquina, tinha a sensação de que a qualquer momento ele ligaria avisando que algum imprevisto o impedira de vir à cidade. Um leve arrepio percorreu sua pele ao ouvir o toque do telefone assim que abriu a porta de casa.

Ela sabia: era ele!

- Cheguei. Estou a tua espera. - Aquela voz tão familiar soava como uma benção.

Letícia sorriu aliviada. Arrumou-se o mais rápido que pôde e a urgência que sentia em vê-lo era muito maior do que sua vaidade jamais supôs alcançar. A imagem refletida no espelho do elevador mostrava uma mulher à beira da felicidade, como se o próximo passo a levasse a um lugar projetado sob medida pelo seu desejo.

Um outro elevador o traria. Ele caminhou em sua direção sem esboçar qualquer sinal afetivo. Letícia estranhou, mas ela sorria, provavelmente, pelos dois! André estava ali, diante dela, como se fosse um estranho. Uma estranha tensão a fez contrair os ombros sem perceber.

- Você está bem? – a voz dele soou suave, mas distante.

- Não sei. Acho que estou com frio. - Letícia ansiava por um abraço, mas ele não parecia muito preocupado com isto. Estava faminto:

- Vamos jantar. Não tive tempo de comer nada desde o café da manhã.

Letícia concordou enquanto pedia ao manobrista que trouxesse seu carro. Durante todo o trajeto, André falou do filho que estava numa fase complicada:

- Adolescentes têm uma instabilidade irritante! Sinto que minha paciência diminui a cada dia. Ontem tivemos uma discussão que me estressou tanto que pensei em desistir de vir para cá, mas depois refleti melhor e concluí que seria injusto com você.

Letícia permanecia atenta ao trânsito e quase agradecida por estar na direção e ter uma justificativa plausível para permanecer calada. Não era exatamente o tipo de noite que havia imaginado. Desejou recomeçar tudo: aquele reencontro, a relação e a própria vida e teve medo de ser tarde demais.

O restaurante estava lotado. Para sua surpresa, ele havia feito a reserva. André parecia ter tudo planejado. Não houve pedidos, nem menu, mas os garçons sabiam o que servir.

- Espero que te agrade. – Ele se referia ao vinho escolhido para acompanhar o jantar.

- Claro. Você é perfeito nisso.

- Em alguma coisa sou bom. – Sorriu pela primeira vez naquela noite enquanto Letícia experimentava a bebida como quem precisa de coragem. O sabor era amargo ao perguntar:

- Você quer me dizer alguma coisa e está sem inspiração?

A questão atingiu o alvo e ele abaixou o olhar. A taça de vinho em sua mão girava delicadamente. O tempo parecia ter parado. Não saberia precisar o quanto esperou até que André, finalmente, disse:

- Melhor ir direto ao assunto.

Repetiu para si mesma: é tarde. Uma pequena parte de sua alma desejou nunca descobrir, mas ela apenas respondeu:

- Diga.

André não tirou os olhos da taça de vinho nem por um momento ao falar:

- Ela está grávida.

Letícia ouviu a frase como quem escuta um dialeto desconhecido. Por alguns instantes não entendeu coisa alguma. Ela? Grávida? De quem ele falava?

André parecia menos tenso. Talvez, ligeiramente constrangido. E ela escutou com muita dificuldade o que viria a seguir:

- Estivemos mais afastados por causa da sua mudança para cá. Minha vida e meu trabalho continuam em Porto Alegre. Você aceitou o emprego em São Paulo e eu não consegui ser transferido. É complicado! Eu não lido bem com esta distância. Você precisa entender!

A mulher ouvia, imóvel. Ele continuou:

- Nossa relação estava ainda nos primeiros passos quando você decidiu vir para cá. Eu te avisei que seria muito difícil suportar esta situação. Você aqui e eu, lá.

André silenciou por um momento e mexeu com mais vigor a taça de vinho:

- Você sabe! Cláudia e eu já vivemos juntos muitos anos, temos um filho, uma longa história. E aí, aconteceu. É da vida!

- André! – O tom de voz lembrava uma atriz sem talento que mal conseguiria interpretar suas falas em uma novela mexicana, mas por incrível que pareça, era protagonista de um filme francês.

- Não vamos dramatizar, minha querida.

Ela bem que tentou evitar. Entretanto aquela situação, o embaraço, a entonação das frases eram caricatos demais! Se os filmes de Rodolfo Valentino não tivessem legenda, André seria o dublador oficial de suas falas no Brasil.

Apesar de todo clima desastrado dessa história, o fato é que Letícia sentiu a garganta seca. Teve, então, um súbito acesso de tosse.

Chamá-la de querida, soava cínico demais! Levantou-se sem pedir licença e foi ao banheiro.

Uma mulher que estava ali perguntou se ela precisava de algo. Letícia olhou-a aflita e ainda tossia ao responder:

- Ar!


Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 15/04/2009
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