Este conto é dividido em dez capítulos: 1 ao 9 e Epílogo.
Todos publicados.
Labirinto
Capítulo 3
A beleza ainda era evidente. Os cabelos longos e muito lisos, a pele morena e os olhos azuis, claros e intensos. O corpo exibia curvas generosas e, justamente por isso, ela parecia mais bonita. A camisa de linho branco e corte impecável, adornada por um longo colar de pérolas. A maquiagem leve realçava os lábios e o perfume marcava presença com delicadeza.
Carolina apontou para um canto da sala:
- Vamos nos sentar ali, é mais confortável.
O ateliê, concebido para acolher a criação, exibia esculturas em mármore. O contraste com a leveza do salão envidraçado trazia equilíbrio ao ambiente. O jardim de inverno coloria o espaço. Paula observou a enorme mesa de trabalho:
- Agradeço sua disponibilidade. Sua agenda deve ser muito concorrida.
Carolina fez um gesto para a escritora acomodar-se em uma das poltronas:
- É um prazer colaborar com a sua obra, mas não posso dizer que foi a artista que aceitou ser entrevistada. Antonio entrou em minha vida quando era uma garota, aos dezenove anos e muito diferente do que sou hoje.
- Como era esta garota?
A mulher parecia distraída com o colar entre os dedos:
- Feita de certezas. Achava que sabia tudo. Era arrogante e egoísta. Como você pode ver, cresci em todos os sentidos.
Paula sorriu com o comentário:
- As mulheres se permitem tão pouco nesse sentido.
- Somos acorrentadas a um padrão. E ao perceber que não nasci para estar presa a nada, mudei. Esqueci a dieta espartana e passei a comer normalmente. Isso trouxe essa curva aqui e a outra ali, mas também a liberdade. Por falar em liberdade, me perdoe por desviar o assunto da sua entrevista. Vamos voltar para Antonio.
A escritora preferiu outro caminho:
- Na verdade, gostaria de voltar à garota de dezenove anos. Quem era ela?
Carolina não se apressou em responder. Ofereceu água e biscoitinhos que estavam na mesa de apoio entre elas. Paula aceitou a bebida e a mulher saboreou um biscoito antes de responder:
- Alguém que se julgava imune. Acima do bem e do mal. Não sei como as pessoas toleravam, se é que o faziam. Minha atenção não se desviava um milímetro sequer do meu próprio umbigo. Enfim, uma garota mimada, mas com jeito de menina alegre e bem nascida. O verniz social deveria ocultar, à primeira vista, meus defeitos.
- Como foi o encontro com Antonio?
Os dedos de Carolina, mais ágeis naquele instante, moviam o colar:
- Isto é importante? Não sei se lembro direito.
Paula não teve tempo para surpreender-se. Carolina emendou:
- Esta era a garota que eu fui. Ela teria dito isso, ainda que lembrasse todos os detalhes do que você desejou saber.
- Continuo interessada em descobrir.
- O encontro foi casual. Antonio estava no último ano de Arquitetura e eu cursava Artes Plásticas na mesma universidade. Nos encontramos em uma manhã que chovia muito e ele simplesmente se colocou embaixo do meu guarda-chuva. A entrada para o prédio principal tinha um jardim imenso e até chegarmos nela foi uma experiência engraçada. Imagine a garotinha cheia de si ao ver seu espaço invadido por um estranho que pega carona, descaradamente, para abrigar-se da chuva.
- Como ele reagiu?
- Ele não se alterou com a minha irritação. Permaneceu embaixo do meu guarda-chuva como se fosse a coisa mais natural do mundo e o pior, nem se ofereceu para segurá-lo.
Paula sorria ao dizer:
- Teria sido mais cavalheiro.
A entrevistada completou:
- E menos divertido.
- O que aconteceu quando chegaram ao prédio?
Carolina parou de brincar com o colar e lembrou-se da cena:
- Foi tudo tão rápido. Fiquei brava, disse coisas absurdas e, de repente, ele me beijou. No instante seguinte, eu olhava para Antonio como se ele tivesse roubado não apenas o beijo, mas todas as palavras da minha boca. A menina mimada parecia ainda mais tola, sem saber o que falar ou fazer.
- E depois disto?
- Antonio seguiu para a aula e me deixou ali. Foi uma coisa tão intensa que eu não dormi aquela noite. Não conseguia parar de pensar nele um só minuto.
- O que mais a encantou neste encontro?
A questão fez Carolina refletir em busca das palavras corretas:
- A combinação irresistível da ousadia misturada à naturalidade. Talvez Antonio saiba intuitivamente quem escolher e entenda mais de mulheres do que nós mesmas. As mais desavisadas, vacilam. As outras sabem o que perdem.
Paula tentava captar os elementos que levaram aquela mulher à paixão. Se conseguisse compreendê-los, estaria mais próxima de Antonio:
- Vocês eram parecidos em alguma coisa?
Carolina olhou para a escritora com uma expressão divertida:
- Claro que sim. Gostamos de estar no controle. Por isso foi fulminante e breve.
- Chegaram a namorar?
- Não chegamos propriamente a namorar, mas o ensaio foi inesquecível. Assumir uma relação significaria nos enquadrar em algo estabelecido e nenhum de nós queria ceder. Ele não se vergaria. Eu quebrei sem vergar. Quando percebi o grau da minha paixão por Antonio, fugi. Evaporei da vida dele sem deixar vestígio.
- Por que não se permitiram ceder?
- Talvez por sermos livres demais. Antonio e eu precisamos de ar, de uma saída. Colocar todas as fichas em um relacionamento exige a capacidade de entrega que não temos. Vamos até um ponto. A partir dele, recuamos. É um jogo que afasta e aproxima. O que nos movia mesmo era seduzir.
- Este jogo deve conter boas lembranças.
Carolina pensou nas conversas intermináveis. A sensação de que teriam assunto até o último dia de suas vidas. A liberdade de falar sobre absolutamente tudo, inclusive de outras possibilidades amorosas, mas nada disso teria acontecido sem o que escolheu para dizer:
- Provavelmente apenas uma pessoa mimada falaria algo tão bobo, mas a melhor das lembranças começou com uma frase: "você é encantadora". Para uma jovem tão egocêntrica era como alguém abrir a porta do Paraíso. Era tudo o que eu queria ouvir e o danado ainda repetia para me torturar!
- Uma doce tortura.
Carolina riu e ofereceu novamente os biscoitos. Paula aceitou antes de perguntar:
- O que Antonio representou em sua vida?
Antes de responder, a artista plástica levantou-se e foi até a mesa. Pegou o porta-retrato que decorava o móvel e entregou à escritora. A foto estampava a mulher que, na época, deveria ter vinte anos.
- Esta era a pessoa que eu fui. Antonio trouxe o sentido. Depois dele, passei a entender mais de mim, ainda que nem sempre eu quisesse enxergar o que via. Descobrir como eu funcionava, o que eu era, trouxe momentos muito dolorosos, mas também a possibilidade de mudar meu eixo, sair da redoma.
- Uma paixão que não foi cega.
- E por isso, definitiva. É impossível esquecer o que eu vi. Convivo com isso todos os dias: eu mesma.
Paula achou evidente, mas disse:
- Você é grata a ele.
Carolina pegou a foto de volta das mãos da biógrafa. Olhou-a mais uma vez e respondeu:
- Sem Antonio, não seria a pessoa que sou hoje.
- Vocês conversam? Tem contato?
- Retomamos durante algum tempo. Há três anos atrás o encontrei no aeroporto. Eu estava na fila de embarque. Senti uma presença atrás de mim. Em seguida, ouvi: "- previsão do tempo para Barcelona: muita chuva". Sorri antes mesmo de me virar para vê-lo.
- Memória impecável.
- O que o torna ainda mais sedutor. Mulheres gostam de quem se lembra dos detalhes. Sentimos que fomos importantes.
- Ficaram mais próximos neste período?
Carolina sorriu e bebeu um pouco de água antes de continuar:
- No filme Casablanca existe uma frase que todo mundo decora: "nós sempre teremos Paris". Antonio e eu, Barcelona. A vida nos ofereceu uma segunda chance. Estávamos mais maduros. Pudemos aproveitar a companhia sem planos, nem receio de que um cortaria as asas do outro. Voamos juntos em todos os sentidos. Nossa liberdade estava preservada e nos amamos enquanto foi possível.
- Uma relação assim pode durar?
- Se durar é porque tem fôlego, mas não significa que tenha mais consistência.
- Talvez mais persistência.
- Não é triste imaginar que um relacionamento dure por isso: porque as pessoas persistem? Traz uma sensação de esforço supremo. Não sei se sou talhada para coisas desse gênero. Prefiro não contrariar minha natureza a este ponto. Vivo o que quero viver. Se tiver que fazer um milhão de concessões, prefiro abrir mão. Nenhuma relação valeria o sacrifício.
- Conceder é sacrificar-se?
- Para pessoas como eu, sim. Para outras, apenas faz parte da vida. Elas precisam da luta, rotina, referência. Famílias giram em torno dessas coisas. Eu não me enquadro em engrenagens. Se você olhar minha obra, verá esse traço que busca não se ater ao limite de seu contorno. Minhas esculturas e jóias tentam traduzir a liberdade para ocupar espaços.
- Como Antonio?
- Talvez, embora Antonio tenha uma característica que o acompanha todo o tempo. Quem o conhece sabe. Ele nunca se compara. Em momento algum você verá esse homem dizer que é melhor ou pior do que ninguém.
- Como traduzir essa postura?
- Não sei se posso traduzi-la com certeza. Talvez seja a consciência do valor que não se acomoda nem se exalta.
A escritora ainda não estava satisfeita com as respostas:
- O que você vê em Antonio?
Carolina tentou expressar a sensação que a acompanhava desde o primeiro momento:
- Beleza.
- Poderia falar sobre ela?
- Não me refiro à beleza estética. Antonio é um homem muito mais charmoso do que propriamente bonito. Essa beleza vem dos movimentos de sua personalidade multifacetada. Isso fascina.
- O que uma mulher pode esperar de Antonio, além de fascínio?
A questão fez Carolina esboçar um leve sorriso. E a resposta soou pronta:
- Não há nada a esperar. Com Antonio, uma mulher simplesmente vive o que há para ser vivido. Nem um momento a mais. Ele é bastante preciso nisso. Começa as histórias como bem entende e finaliza da mesma forma.
- Estes movimentos são arquitetados?
Carolina fez uma breve pausa, desta vez, para beber mais um pouco de água. A escritora imaginou qual seria a sede da artista plástica ao ouvir sua resposta:
- Antonio sabe como agir diante das mulheres e principalmente com aquelas que não conhece. Age como se soubesse tudo e mais alguma coisa sobre elas. Uma espécie de conhecimento tácito o guia.
- Parece algo admirável.
- Além disso. Impressiona irreversivelmente.
Paula formulou a última pergunta como se aquela entrevista fosse apenas um pretexto:
- Você ainda o ama?
A entrevistada devolveu a questão:
- Você ainda pergunta?
As mulheres sorriram e Carolina foi breve:
- Se amar é enxergar o outro como a si mesmo, devo amá-lo muito.
Paula despediu-se da versão feminina de seu biografado. Tudo parecia encaixar-se, mas a escritora estava apreensiva. O elo perdido do sentido viria a seguir.