DOLCE VITA
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Este conto é dividido em dez capítulos: 1 ao 9 e Epílogo.
Todos publicados.


Labirinto

  Capítulo 4





Ela entra na sala e senta-se em frente à escritora. Paula observa atenta o movimento gracioso da perna que se cruza sobre a outra. A garota, sem sorrir, pergunta:

- E então, podemos começar? Tenho um cliente daqui à uma hora e meia.

Paula achou instigante a inversão dos papéis. Catherine assumiu o controle. Chegou depois dela e iniciou a conversa. Cabia à biógrafa reconduzir a situação:

- Em primeiro lugar, agradeço seu depoimento. Antonio me surpreendeu duplamente. Ao falar de você e, em seguida, fazer nosso contato para que eu pudesse entrevistá-la.

Catherine, sem dizer uma palavra sequer, olhava a biógrafa com uma expressão indiferente, como se para ela não houvesse mais surpresa alguma, apesar de ter apenas vinte e três anos.

Paula notou uma pequena cicatriz no pescoço, disfarçada pela maquiagem. Lembrou-se dos tempos de revisora. Caçadora de erros, como ela se definia. Estava ali para descobrir outra parte da história de Antonio. A porção contida em uma mulher com o rosto ainda arredondado pela pouca idade. Os cabelos louros eram naturais, bem tratados e caíam abaixo dos ombros. Sua pele exibia um bronzeado uniforme. A aparência saudável e atraente da juventude contrastava com o silêncio constrangedor entre elas.

Paula ajeitou-se na poltrona e pediu licença para gravar o depoimento. A pergunta que abriu a entrevista era previsível:

- Há quanto tempo você faz programas?

- Quatro anos. Comecei aos dezenove.

- O que te levou a exercer esta profissão?

Catherine notou a mudança no tom de voz da escritora ao falar "profissão". Paula esforçava-se para parecer natural, o que fez a garota responder, desta vez, com um sorriso:

- Não espere nenhuma história triste. Nunca passei fome, nem tive problemas em pagar minhas contas. Não tenho pais doentes ou filhos para sustentar.

- Qual a história que eu deveria esperar?

- Nenhuma em especial. A verdade pode ser simples.

Paula arriscou:

- E poderia dizer qual seria?

- Poder. Os homens têm uma relação de poder com o sexo. E eu decidi que teria uma relação de poder com os homens através do sexo.

- Você não os atende para satisfazê-los? Onde está o poder?

- No meu corpo. O prazer só é possível através dele. E quem domina meu corpo sou eu.

- Você já se apaixonou por algum cliente?

Catherine foi breve:

- Quando aconteceu, deixei de atendê-lo.

- Pelo que sei, Antonio parou de encontrá-la. Apaixonou-se por ele?

- Isto faz alguma diferença?

- Para o livro, sim.

Catherine sorriu com a resposta da biógrafa e emendou:

- Viu como a verdade pode ser simples?

Paula retribuiu, com alguma dificuldade, o sorriso antes de prosseguir:

- Você é bastante articulada.

- Isto a surpreende?

- Seria tolo dizer que não.

A sinceridade da escritora foi a senha para que Catherine apresentasse seu currículo:

- Estou no último ano da faculdade de Comunicação, fiz um curso de introdução à Filosofia, falo duas línguas, estive em cinco países da Europa, acompanhando clientes.

Paula não conseguiu conter o sorriso. Aquela entrevista era uma surpresa insólita. Estava diante de uma mulher que sabia exatamente o que falar e fazer. Talvez muito mais do que ela própria. Sentiu um misto de admiração e perplexidade ao perguntar:

- Estar nesta profissão te fez ver os homens com outros olhos?

Catherine levou algum tempo antes de responder:

- Acho estranho moralizar o que não tem moral. E o que vale para o desejo, vale para o afeto. Essas coisas desconhecem certo ou errado. Não se deseja alguém porque é correto ou não. Não se gosta de uma pessoa por dever nem se deixa de gostar porque não é mais possível.

A biógrafa ouvia atenta e ao mesmo tempo, fisgada em uma espécie de armadilha, ao imaginar aquela garota como uma pessoa limitada, repleta de necessidades ou um banquete para analistas. Buscou organizar suas idéias ao formular a pergunta que a incomodava:

- Por que os homens procuram uma garota de programa?

- Para evitar perguntas como essa, por exemplo. - Catherine riu e em seguida se desculpou: - é a verdade.

Paula controlou-se e tentou não demonstrar o que sentia. Era preciso ser, como a entrevistada, mas em outro sentido, profissional:

- Você oferece a possibilidade de uma relação que não se discute. E, portanto, não se desgasta.

- Tudo se desgasta. O que eu ofereço é o desgaste sem dor. Sem perdas. Ninguém sente que realmente perdeu ao encerrar os encontros. Ainda que, em certos casos, eu não possa garantir nada.

- Com Antonio foi assim? Sem garantias?

- Antonio! Estamos aqui por ele! Não é engraçado?

Paula sorriu diante da reação espontânea da garota. Pela primeira vez vislumbrou algo nela sem o cálculo prévio. Restava admitir a lacuna aparentemente inexplicável:

- É verdade. Estamos aqui por ele. E praticamente não falamos dele até agora!

Era a vez de Catherine rir:

- Ele tem este dom, já notou?

Paula pensou nas qualidades mais evidentes do arquiteto, mas não conseguiu decidir-se por nenhuma. Não quis arriscar e devolveu a pergunta:

- A qual você se refere?

A resposta foi direta:

- Antonio tem o dom de se ocultar.

Naquele instante, o celular de Catherine tocou e ela pediu licença para atender. Paula saiu da sala por alguns minutos. Precisava se recompor. Aquela entrevista estava longe de terminar e ainda nem haviam tocado no assunto que a trazia ali: Antonio. As perguntas continuavam dentro dela. Afinal, o que aquele homem desejava ao expor com tamanha liberdade sua vida? O que o movia? Vaidade? Diversão inconseqüente? Por um momento supôs que nada daquilo era verdade e ele havia contratado Catherine para desempenhar um papel.

Paula ouviu a voz da garota no final do corredor chamando-a de volta. Ao entrar na sala, Catherine disse que o cliente havia desmarcado e ela teria mais tempo, caso desejasse estender a entrevista. A biógrafa pensou se o tal cliente era Antonio buscando informações sobre o depoimento. Observou a garota que parecia um pouco mais à vontade e disposta a falar. Paula decidiu acreditar nela. E retomou as perguntas:

- O que você diria sobre os homens que a procuram?

A garota olhava fixamente para a escritora ao responder:

- Generalizar é tão injusto, não acha? Como poderia rotulá-los de uma coisa ou outra? Quem sou eu para dizer que fulano é um pervertido, o outro um idiota carente, aquele ali um sedutor compulsivo? O que eu vejo pode definir alguém?

- Poderia tentar? - Paula fez a pergunta com uma surpreendente delicadeza.

- Atendo meus clientes sem me preocupar em entendê-los da forma como sua pergunta tenta decifrar. Justamente por isso me procuram. Não trago o ranço das relações que precisam ser analisadas, cultivadas nem cobro nada além do meu preço para oferecer companhia a eles. E minha companhia inclui o cenário não apenas na horizontal. Algumas vezes, a horizontal nem acontece. Estou ali para entretê-los. Isso pode incluir um jantar sofisticado, o teatro, a festa, enfim, tantas possibilidades.

- Eles te procuram não apenas para satisfazer o desejo físico.

Catherine concordou e a escritora disse:

- Não acha contraditório?

- Não. Acho natural. São pessoas e não um pedaço do corpo em excitação à espera do prazer. Falamos de muitas coisas, inclusive de literatura. Você é uma escritora. Deve ser interessante imaginar alguns dos seus leitores falando de seus livros comigo. E isso já aconteceu várias vezes.

Paula esboçou um sorriso e permaneceu calada. A garota, então, prosseguiu:

- O que esperava ouvir? Que eles são covardes, fracos, pecadores ou solitários? São homens. E muitas vezes, alguns deles, principalmente os casados, me fazem sentir uma espécie de ternura ao buscar a relação com uma profissional. Eles tentam com isso preservar a mulher que amam e eu nunca duvidaria do amor de um homem, nem mediria seu afeto pelas mulheres com quem se deita ou deixou de deitar. Como isso é possível? Meu trabalho me ensinou a separar as coisas. Meu nome não é Catherine. A Catherine é a profissional que atende os clientes. Assim como os homens que passam por ela não são aqueles que estão com suas mulheres e famílias. Eles separam as coisas. E nós, garotas de programa, também. Temos nossa vida particular e amorosa, familiar, independente. Uma coisa não interfere na outra.

- É possível uma separação a este ponto ser saudável?

A garota respirou profundamente antes de fechar o diagnóstico:

- É o preço que se paga pela hipocrisia e infantilidade. Não é possível acreditar que as pessoas serão felizes e fiéis para sempre. Pode acontecer com qualquer um. Não existe imunidade. Alguns escolhem viver as histórias paralelas. Outros preferem a segurança de uma profissional. A idéia de exclusividade é tão infantil. E inútil. É como lutar contra a força da gravidade ou a ação do tempo. Não quero dizer que todas as pessoas são assim. Generalizar é injusto! Já disse isso e repito...

Paula novamente pensou na frase: "a verdade pode ser simples". E argumentou:

- Algumas pessoas poderiam analisar a hipocrisia e a infantilidade na manutenção desses relacionamentos, ou seja, não abrem mão de suas mulheres, mas querem estar com outras, diversificar. Crescer é abrir mão, escolher. Já pensou por esse ângulo?

- O que a pessoa faz com seu corpo é algo que diz respeito a liberdade dela. Temos poucas coisas na vida. O que você pode dizer que realmente te pertence? Para mim duas coisas: o corpo e a alma. Disponho deles como quero. E não vejo nada além de liberdade nisso. É preciso coragem para ser livre. E saber separar as coisas.

A escritora pensava a respeito do que acabara de ouvir quando escutou a risada de Catherine. E a garota, em tom irônico, formulou a questão desta vez:

- Filosofei demais para uma garota de programa?

Paula precisava ser mais ágil:

- Quem é Antonio? – a pergunta direta não alterou a expressão da entrevistada. Sua resposta foi concisa:

- Durante dois anos e meio, um cliente.

- Poderia ser um pouco mais clara?

- Mais ainda? Você não se satisfaz facilmente! – e o sorriso maroto que terminou a frase, combinava, finalmente, com a aparência jovial de Catherine.

- Tem razão. Não me satisfaço e nem meus leitores. Você já disse que conheceu alguns.

- Sim. Antonio, inclusive, é um deles.

- Devo entender que ele é um leitor voraz?

- Não apenas o leitor, mas um homem que não se satisfaz com facilidade, se é que podemos dizer que Antonio atinge a satisfação. Ele sempre quer mais. Da vida e de tudo que o cerca.

- Como se encontraram?

Catherine olhou a biógrafa com uma expressão irônica e disse:

- Você conhece a história. Ele já disse.

- O que não exclui a pergunta. Quero ouvir o seu lado da história.

- Fui contratada para ser um presentinho na vida dele. Era para durar apenas uma noite. Um empresário fez o contato e nos colocou no mesmo ambiente, sem que Antonio soubesse que eu era uma garota de programa e que estava ali, paga por outra pessoa, para agradá-lo.

- E como aconteceu a aproximação entre vocês?

- Estávamos em um evento. Eu era a recepcionista do estande. Antonio chegou e foi falar com este empresário. Conversaram por alguns momentos. O homem que me contratou foi chamado para atender um grupo de estrangeiros e neste instante eu me aproximei e ofereci uísque a ele. Antonio sorriu e disse que nunca bebia sozinho. E dali para o restaurante, foi a passagem mais natural e fulminante que você possa imaginar.

- Então para Antonio você era uma recepcionista que ele havia convidado para jantar.

- Exatamente. E o jantar foi regado a champanhe, risos, olhares e, claro, o desejo muito antes da sobremesa, enfim, o clima perfeito para terminar em um quarto de hotel. Pode parecer um ritmo intenso demais, mas garanto a você, a intensidade ainda não havia entrado nesta história.

Paula imaginou o clima da cena e surpreendeu-se ao sentir que desejava viver algo semelhante. Corou ao notar a atenção de Catherine. A garota quebrou o silêncio em tom de brincadeira:

- Parece filme?

Paula retribuiu com algum senso de humor:

- Primeiro o livro. O filme pode vir depois.

Naquele instante, o sorriso das duas mulheres sinalizava mais um passo em direção ao arquiteto:

- Depois daquela noite, como Antonio soube quem você era?

Catherine lembrou-se da manhã em que acordou antes dele e saiu sem deixar rastro. Era novamente uma profissional.

- Ele me contou, um mês depois, quando voltamos a nos encontrar. Foi acordado pelo serviço de quarto do hotel. Ao atender, recebeu um cartão que acompanhava o café da manhã servido na suíte. Abriu o envelope com seu nome e leu: "- gostou do presente?". Quem assinava era Mauricio, o empresário do estande. Os dois eram amigos e por um algum tempo, Antonio e ele se estranharam, mas depois tudo voltou ao normal.

- Como eram os encontros?

O olhar de Catherine parecia distante ao responder:

- Nunca fizemos nada igual, embora os jantares, festas e pequenas viagens pudessem parecer os mesmos. Nada entre nós era definitivo.

- Poderia explicar melhor?

- Ainda que algo tivesse sido maravilhoso, não faríamos novamente por ser mais simples. Muita gente se acomoda na relação, pensa que sabe o que a outra pessoa gosta e deixa de descobrir possibilidades ainda inexploradas. Antonio me ensinou a viver tudo como se fosse algo novo. E eu aprendi a olhar para ele com a sensação da primeira vez o tempo todo. Ele me ajudou a ir além dos meus limites. E isto, em minha profissão, é perigoso e ao mesmo tempo, essencial.

- Onde está o perigo e a essência?

- A essência no sexo. O perigo, no envolvimento.

A questão a seguir era automática:

- Você se envolveu?

- Esta pergunta não pode ser respondida pela Catherine. Ela não se envolve.

- A pergunta passa a ser pessoal. E permanece.

Catherine balançou a cabeça como se quisesse livrar-se da lembrança, e em seguida, respondeu:

- O mais irônico desta história está na própria armadilha. Teria sido algo para Antonio cair e não eu. Quando me dei conta, sentia saudade dele como se fizesse parte da minha vida. Meu corpo trazia as marcas da ausência do amante e descobri que pensava no homem como uma mulher comum. Isso me deixou sem norte.

- Foi a primeira vez?

- Sim e não. Nas duas outras vezes consegui estancar o sentimento e parei de me encontrar com os clientes, mas com Antonio, deixei de cobrar para estar com ele e durante um ano, nos encontramos sem pagamento no final da noite.

- Por que se permitiu viver isso? Não é uma espécie de "suicídio" na sua profissão?

- Não sei se é visível a olho nu, mas sou humana. Podemos encerrar?

Paula não teve tempo para as desculpas. Catherine levantou-se abruptamente e antes de sair, disse:

- Não vou cobrar pelo depoimento. Foi por conta da casa. Sucesso no livro.


Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 17/04/2009
Alterado em 22/04/2009
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