Este conto é dividido em dez capítulos: 1 ao 9 e Epílogo.
Todos publicados.
Labirinto
Capítulo 5
O sorriso de Alessa lembrava uma menina que se recusava a crescer. E foi com ele que recebeu Paula em uma tarde ensolarada. A escritora observou a sala do escritório da arquiteta e surpreendeu-se com a desorganização. Esperava um lugar ordenado e impecável. Encontrou o caos em cima do que em algum momento poderia ser chamada de mesa.
- Estou ansiosa! Entrevistas me deixam assim! – Alessa exibiu novamente o sorriso infantil.
Paula imaginou como seria aquela mulher aos vinte anos. O rosto era expressivo, o corpo muito magro e os movimentos ágeis e ao mesmo tempo, tensos. Os braços se moviam para representar o que falava. Cada gesto era acompanhado pelo som das pulseiras que batiam uma nas outras.
A biógrafa tentou situar o depoimento:
- Podemos começar voltando no tempo. Antonio surge em sua vida aos vinte anos.
Alessa deixou de sorrir ao responder:
- Voltar no tempo. Se isso realmente fosse possível, a história seria outra.
- E qual seria?
- Antonio se transformou em tudo que desejei para mim. Infelizmente descobri isto muito tarde.
- Quando?
- No ano passado. Treze anos depois do nosso primeiro encontro.
Paula arriscou:
- Sobre qual história deseja falar? A que foi escrita ou a que gostaria de escrever?
- As duas.
- Estou ouvindo.
- Nos conhecemos na Faculdade de Arquitetura. Não saberia descrevê-lo com precisão. Talvez eu não entenda muito de gente. Desenhar seria mais simples.
- Desenhe.
Alessa sorriu novamente como uma criança. Pegou uma caneta e passou a rabiscar alguma coisa. Depois de algum tempo, disse:
- É assim que o vejo.
Paula observou o papel com o desenho de uma enorme onda prestes a desaguar em um rochedo. O movimento sugeria uma força incontrolável. Ao devolver a ilustração disse:
- Você o admira muito.
- Mais do que isso. Eu gostaria de merecê-lo.
A questão mais intrigante se ocultava atrás daquele sorriso teimoso que pontuou a frase:
- Antonio sabe ocupar espaços como ninguém e não apenas na arquitetura.
- Quer falar sobre isso?
- No dia em que nos conhecemos, eu estava com o pé machucado. Ele observou meu andar. Havia uma escada enorme que separava o prédio da saída para rua. Antonio aproximou-se e simplesmente me deu a mão. O gesto parecia tão natural como se eu estivesse esperando o apoio. Quando me dei conta, desci a escada com a ajuda dele e no último degrau, o convite para me levar em casa estava aceito.
- Apesar de jovem, um cavalheiro sem tempo a perder.
O sorriso teimoso reapareceu:
- Antonio tinha uma motocicleta e o mais curioso: dois capacetes. A máquina brilhava com os reflexos do sol. Carros e motos costumam dizer muito sobre um homem. Ali, diante do que seria um momento corriqueiro, senti na pele a capacidade que ele tem de projetar imagens diferentes. Aquele que me ajudou com suavidade deu lugar ao que me levou para a casa em cima de uma moto que disparou entre os carros. Nunca experimentei tanta velocidade. E não senti medo. Cada curva era feita com precisão cirúrgica e as retas consumidas no menor tempo possível.
Paula interveio:
- A velocidade do encantamento parece maior.
Alessa olhava o desenho em suas mãos como a chave para a compreensão daquele encontro. Ela era o rochedo que seria inundado pela onda gigantesca:
- Naquela moto, ao sentir o vento em meu corpo, tive a sensação de que me apaixonei antes mesmo de tê-lo conhecido, como se o esperasse desde sempre.
- Uma paixão predestinada?
A arquiteta lembrou-se da noite em que os dois acamparam em uma fazenda. Um leve arrepio percorreu novamente suas costas. No entanto, aquilo pertencia a ela e a mais ninguém e preferiu responder de outra forma:
- Predestinada ou não, levarei Antonio comigo aonde quer que esteja.
- O que Antonio trouxe para a sua vida?
- A intensidade das histórias cortadas na melhor parte. Com ele aprendi a olhar para tudo como uma experiência única. Não se pode voltar atrás nem um segundo sequer. Nada de coisas amadoras, nem fáceis. Viver até a última gota. Saborear até o fim.
- Por que esta história foi interrompida?
- O trabalho de meu pai exigiu que mudássemos do Brasil por quatro anos. Ficamos em Londres durante este período. Antonio não quis manter nosso namoro, afinal seria inviável por tanto tempo longe. Depois do primeiro ano fora, perdemos contato. Quando retornei, um amigo em comum me contou que ele não estava mais na cidade, mas em Barcelona, fazendo pós-graduação.
- O namoro foi breve?
- Alguns meses que me deixaram a sensação de eternidade. Antonio surgia em meu pensamento a qualquer hora do dia, sem motivo nem cabimento. Nem eu mesma poderia explicar essa presença. Alguém que não estava mais comigo, embora eu pudesse senti-lo dentro de mim.
- Isso não era aflitivo?
Alessandra olhou para escritora com uma expressão de perplexidade. No instante seguinte, uma forma de contentamento emergia na superfície da entrevista:
- Pelo contrário. Antonio me fez sentir que nunca mais estaria sozinha. Ele faz parte da minha vida. Posso vê-lo na maneira como desenho minhas obras, reconheço sua presença no meu sorriso, na vontade de me aventurar pelo desconhecido. Toda vez que me supero, lembro de Antonio. Quando inovo ou faço algo diferente sei que o traço dele me inspira.
Paula ouvia o depoimento como a descrição de uma bênção, um presente que a vida deixou no caminho. Aquela mulher havia encontrado em Antonio uma espécie de esperança. A justificativa para continuar mesmo após tê-lo perdido. Sentiu que a próxima pergunta seria dolorosa. Ossos do ofício:
- Se estivessem na mesma cidade todo o tempo, teriam outra história para contar?
Alessa fechou os olhos por um momento como se procurasse imaginar a possibilidade. O que teria sido deles? Daquela alegria que dispensava palavras. As frases ditas ao mesmo tempo, os gostos tão próximos, o desejo que encaixava os corpos com uma perfeição quase irritante, como Antonio definia para provocá-la.
- Não queria que soasse como um clichê. Éramos as pessoas certas no momento errado. A vida nos pregou uma peça. Tínhamos tudo para ser mais e fomos tão pouco.
Paula emendou:
- A vida não é justa.
O brilho no olhar da arquiteta não era apenas fruto da excitação de tantas lembranças e uma lágrima impertinente, mais rápida do que o gesto para escondê-la, trouxe outro trecho da história.
- Eu sei que não é justa, mas não altera nada. Altera?
- Gostaria de dizer que conforta, mas não sei se faz alguma diferença quando sentimos coisas assim.
Alessa parecia exausta. A marca da ansiedade era pura aflição. Sua dor estava exposta:
- Sei que me recuso a esquecê-lo. Tudo que vivi ao lado de Antonio permanece intacto, idealizado em minha memória. Não pense que me consolo com isso. Não tenho a grandeza dos que perdem com esportividade. Sou imatura demais para abrir mão de algo ou alguém.
Paula não se conteve:
- Isto não prolonga a agonia de sua perda?
O silêncio da entrevistada fez a escritora torcer para que ela não desistisse no meio do caminho. No entanto, Alessa recuou e protegeu-se outra vez:
- Você é escritora ou psicóloga?
A biógrafa foi direta:
- Apenas escritora. Seu depoimento é valioso para a biografia de Antonio.
A frase soou como uma porta que se abre:
- Minha perda não vem ao caso. Nem minha agonia. Estamos aqui para falar de um homem que marcou minha existência. Não quero entrar nesse livro como a parte que se desmanchou inconsistente no meio do caminho.
A vaidade daquela mulher fez Paula sorrir ao responder:
- As paixões nos fazem perder a medida.
A arquiteta baixou a guarda novamente:
- Eu nunca mais perdi a linha. Antonio me ensinou a escolher homens mais possíveis.
- Talvez os mais possíveis não fascinem.
Alessa concordou e exibiu sua teoria da arquitetura do desejo feminino:
- Certamente não, mas nos sentimos seguras. Ainda que, em algum momento, a segurança possa entediar. Muitas vezes não queremos nada que faça sentido. No fundo é isto: queremos ser surpreendidas, mas sem perder o chão. Enfim, o pacote todo não vai acontecer. Milagres merecem causas mais nobres!
O riso das duas mulheres suavizou a entrevista. A turbulência havia passado, mas ainda restava aterrissar. Paula não deixaria um ponto essencial encoberto. Após treze anos, como teria sido rever uma paixão tão intensa?
- Onde aconteceu o reencontro?
- Em Atlanta. Apesar de ser arquiteta, minha especialidade, há quinze anos, é criar ambientes para festas e casamentos. No ano passado, participei de um evento sobre artigos de decoração em um hotel onde Antonio estava hospedado. Ele era o principal palestrante de um congresso a ser realizado ali. Depois de duas décadas, enfim nos reencontramos.
- Como foi isso?
Alessandra concentrou-se nas imagens que faziam companhia a ela. O garoto da moto era o homem ao seu lado no balcão de atendimento. O terno italiano azul-marinho e correto; a gravata estampada em tons muito vivos quebrava com perfeição a severidade do traje; o cabelo sempre desajeitado e o perfume parecia impregnado ao seu olfato:
- Entrei no hotel apressada. Ao pegar a chave da minha suíte com um dos recepcionistas, Antonio surgiu ao meu lado e disse: "só poderia acontecer na cidade que você sempre quis morar!". Sou apaixonada pela Geórgia e perdi a conta de quantas vezes ele me ouviu falar disso. Chegamos a planejar uma viagem para lá, mas nunca dava certo.
- Deve ter sido uma grande surpresa para ambos.
A arquiteta assentiu e respondeu:
- E, por outro lado, uma confirmação. Esbarrar novamente em Antonio era a prova de que ele continuava vivo dentro de mim como se o tempo não tivesse passado. Algo tão intenso que se fosse recíproco, talvez eu nem suportasse! Aos vinte e poucos anos isso é tudo e basta. Aos quarenta, a gente sabe que dói.
A biógrafa preferiu a delicadeza do silêncio. A descrição do reencontro viria a seguir:
- Ele me convidou para jantar numa churrascaria argentina e ouvimos tango a noite inteira. Observava as pessoas dançarem e os passos pareciam traduzir minha história. Eu amava o impossível e convivia com a saudade do que poderia ter sido. Nossos olhares retratavam o desencontro. Meu capítulo na vida de Antonio havia sido encerrado.
Alessandra dobrou o desenho e colocou-o dentro de uma pasta cinza. Paula concluiu:
- Ele se despediu ali?
O sorriso teimoso acompanhou o final da frase:
- O último tango em Atlanta? Não. Antonio entra e sai da vida de uma mulher sem olá nem adeus.