A Liberdade é Azul
"O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém." - Sigmund Freud
"No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego." - Sigmund Freud
A vida tem caminhos inesperados. Escrevo sobre um filme que aborda a dor diante das trágicas perdas no momento em que uma parte de mim parece perdida...
Os terremotos que abalaram a região central da Itália destruindo construções dos séculos XV, XVI e XVII, significam, além da brutal interrupção de vidas inestimáveis, a perda de uma parte de nós.
Uma faceta da memória da humanidade é apagada pelos escombros. Pessoas, histórias e lugares desaparecem. O vazio se instala na realidade exterior.
E o que acontece em nosso mundo interno?
"A Liberdade é Azul" é o terremoto que assola a vida de Julie (Juliette Binoche) que perde marido e filha em um acidente de carro. A protagonista sente seu mundo desabar em uma espécie de esfolamento, a dor que a dilacera internamente.
Julie decide apagar os vestígios de sua existência vinculada aos entes queridos. O quarto azul da filha é esvaziado. Destrói as partituras do esposo que era compositor.
Na cena com seu advogado, onde decide se desfazer de todo o patrimônio, símbolo da construção da sua história com o marido, segura nas mãos algumas pedras, cristais azulados (arrancados do lustre do quarto da sua filha).
Na realidade exterior, apenas este elo concreto é preservado: o lustre azul. (Em uma cena tão rápida quanto intensa, o personagem deitado na calçada diz a ela: "é preciso agarrar-se a alguma coisa". Julie não consegue ouvi-lo, ou seja, este elo que a ligará à vida, ainda permanece sem elaboração consciente, porque é preciso tempo para que o luto percorra o caminho da dor até libertá-la novamente em uma existência possível).
Apagar tantos traços externos poderia ser interpretado simbolicamente de muitas formas. Penso que Julie mistura-se internamente ao marido e filha. Eles desaparecem para se alojarem no seu eu.
A primorosa fotografia, quase um "personagem narrador", ora traz o azul, a memória afetiva, ora a tela negra enlutada: o que não podemos ver dentro dela. O que Julie deseja apagado.
A vida se esvazia porque o marido e a filha estão misturados ao ego de Julie. Eles se retiraram não apenas da vida concreta, mas de suas possíveis representações (a tela sem luz).
Fora deste eu nada importa. Mais uma vez o "personagem narrador" da fotografia mostra o mundo do ponto de vista de Julie: os detalhes nos movimentos de aproximação da câmera. Nada ao seu redor possui valor ou espaço.
Este estreitamento emocional beira à poesia das notas de uma partitura focalizadas uma a uma. E outras vezes, até respirar parece ocupar demasiado espaço. E ela respira com extrema dificuldade.
Em seu texto "Luto e Melancolia", Sigmund Freud nos lembra que o luto é a reação diante do vazio no mundo. É a realidade que perde sentido. Nossos vínculos são investidos de afeto. Diante da perda, todo o investimento amoroso retorna para nós, uma vez que não há mais a quem dedicá-lo. E é preciso tempo até que se possa elaborar a perda, cicatrizar a ferida e seguir adiante.
Entretanto nem sempre esse trabalho do luto é realizado. Há um desvio no caminho da dor. E surge a melancolia. A ferida da alma que não cicatriza. O entendimento ressentido de que o outro nos abandonou "cedo demais". E o retorno deste investimento amoroso se mistura ao próprio eu. A pessoa sente (e ressente) o seu próprio sentido e valor como perdidos.
Este ressentimento pode ser visto em cenas absurdamente verdadeiras e por isso, repletas de uma beleza difícil, pesada e sobretudo, humana.
Destaco a seguir três cenas que mostram o ressentimento deste afeto ambivalente de amor e ódio (raiva), característico do luto até uma certa altura e sintoma clássico na melancolia em particular.
Julie joga as partituras do marido em um caminhão de lixo. Vemos a máquina trituradora "devorar" os papéis. Em seguida, a protagonista esvazia a bolsa. E encontra um doce para sua filha, envolto em papel laminado azul (até parece os cristais do lustre). E surge o amargo sabor da lembrança de uma filha perdida. Julie tritura e devora, desta vez, concretamente, mais um traço que deseja apagar. Podemos ouvir sua dor: o som da mastigação furiosa e ao mesmo tempo, apaixonada.
A terceira cena começa após as tentativas de triturar seu passado. Julie procura o amigo que trabalhava com o marido compositor. Um homem que a ama. Eles se relacionam naquela noite. No dia seguinte, Julie se despede. Não deseja mais vínculos. Seu ressentimento recusa o amor de outro homem. E nesta recusa existe um ataque ao próprio ego que leva a uma espécie de punição (os eventos no hospital mostram o início deste martírio).
Julie tenta seguir sem passado. Em uma das mãos, a caixa onde está o lustre do quarto da filha. Enquanto a outra é esfolada contra o muro.
O símbolo desta dor em carne viva é uma das imagens mais perturbadoras que assisti no cinema. (Juliette Binoche se entrega ao personagem e interpreta sem qualquer proteção na mão. O diretor, ou melhor, o mestre Kieslowski, reprovou a atitude da atriz de ferir-se realmente. Segundo Binoche, as marcas levaram um ano para cicatrizar).
Julie deseja começar do zero. A realidade e o próprio acaso, no entanto, mostrarão que os sinais do seu passado permanecem. O destino se encarrega de ligar outras peças deste mosaico que é a vida.
A protagonista muda para um apartamento. E a primeira coisa a fazer é instalar o lustre azul. Uma de suas vizinhas, certa vez, entra em sua sala, observa e relata a coincidência: tivera na infância o mesmo lustre. E o sentido daquele objeto as liga. Um novo vínculo surge.
Julie é procurada por um garoto que testemunhou o acidente de carro. Ele deseja entregar uma corrente de ouro com um crucifixo. Este é um símbolo que pode ser interpretado como o sacrifício, o fardo, a dor, a paixão. É muito comum escutarmos a expressão: "cada um tem sua cruz para carregar".
(Não desejo entrar no aspecto religioso ou dogmático, apenas no terreno metafórico. A cruz que Jesus carregava não poderia ser entendida como a consciência de que seria sacrificado? A maior angústia do ser humano não é a consciência dolorosa de que a morte pode acontecer a qualquer instante?)
De volta à cena com o garoto: a testemunha ouve uma frase do marido antes de morrer. E conta a Julie. Sua reação é rir. O garoto não entende. E desta vez, Julie abre espaço para uma confidência: aquela frase era o final de uma piada. E o marido costumava repeti-la. O acidente aconteceu nesse instante.
Ao deixar escapar um detalhe de sua história, Julie compartilha, pela primeira vez, seu sentimento com um estranho. E deixa que ele fique com a corrente e o crucifixo (sua "cruz" nunca deixou de estar com ela). Neste momento, não existe apenas a recusa do passado (a tela negra). É o vislumbre de um desejo de que o passado fique no passado.
Até agora não falei da mãe da Julie. Ela está em um asilo e não é capaz de reconhecê-la. Vínculos assim morrem dia a dia em um luto permanente. No entanto, esta mãe, passa seus dias assistindo programas de esportes radicais (a vida é um risco, ou nas palavras da personagem: "não se pode renunciar a tudo").
Outros acontecimentos farão Julie reavaliar sua vida. A descoberta da amante grávida do marido. Uma corrente e cruz iguais a dela aparecem em volta do pescoço da outra mulher. A amante também deveria seguir sem ele, embora com o filho gestado em seu ventre.
A figura do filho ainda em fase de gestação é o símbolo que liga Julie à sua criança perdida. E ela deseja que aquele filho tenha o sobrenome do marido e a mansão onde viveram (elementos do destino sonhado para a sua filha como herança). O desejo de Julie é sublimado através daquela criança que nascerá com o nome do esposo, na casa onde um dia moraram.
A sublimação novamente acontece com a música. Julie termina a composição do marido (nem todas as partituras haviam sido destruídas). O final daquela parceria é sublimado em notas que permanecem eternizadas em um espaço saudável e criativo.
Por isso, pode mergulhar no amor de outro homem (a cena é magistral).
Inicio e concluo este texto com uma referência à Itália. Uma parte da minha memória afetiva é "azzurra", ou seja, azul também. Na cena final, a personagem felliniana Cabíria traz os olhos marejados e sorri na estrada da vida.
Em "A Liberdade é Azul", Julie derrama lágrimas diante do azul, a memória afetiva que surge ligada à esperança. E é possível vislumbrar o esboço de um sorriso contido.
Uma obra de mestre merece e está aberta a inúmeras interpretações. Esta é longa e pessoal demais. Como sempre.
Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 18/04/2009