No quarto ano de Psicologia, uma vez por semana, nos deslocávamos do prédio da faculdade, para cumprir estágio anual em um hospital psiquiátrico. Na época, o currículo exigia que a disciplina, denominada "Psicopatologia", oferecesse complemento fora da universidade para a futura especialização clínica.
Em dois dias, aprendi mais sobre loucura do que em cinco anos de curso. E passo a relatar o episódio que inaugurou meu primeiro contato com um mundo desligado da realidade.
Minha turma entrou, pela primeira vez, na instituição, pelo jardim. Nosso professor nos esperaria por lá. Enquanto aguardávamos, um dos internos aproximou-se de uma de nossas amigas e disse:
- Onde estão as balas?
- Ela respondeu:
- Não tenho balas.
Neste instante, o paciente demonstra uma profunda contrariedade e desfere um tapa no rosto da aluna.
Na semana seguinte, a cena se repete. O mesmo interno estava ali, no jardim. E desta vez, a estudante ao passar por ele, adiantou-se:
- Trouxe as balas.
O paciente enfurecido, diz:
- Balas? Que balas?
E a aluna, mais uma vez, recebe um golpe no rosto.
Ela apanhou porque não tinha as balas. E também por tê-las.
Nosso professor aproveitou esse episódio para mostrar o quanto estávamos presos à lógica e funcionamos de acordo com ela, mesmo em um mundo onde esta coerência, ou melhor, correlação, simplesmente não existe. Ao romper com a realidade estas pessoas criavam seu próprio mundo e códigos.
Desde este incidente aprendo que, fora dos muros de uma instituição psiquiátrica, algumas situações ou pessoas nos oferecem o mesmo beco sem saída.
Seremos punidos por "ter ou não as tais balas". A desaprovação já estará engatilhada. O olhar doentio recusa qualquer outra possibilidade de leitura para nossos atos.
Entramos em uma espécie de teatro de farsa onde nosso papel está previamente composto. Nossas cenas representam a válvula de escape para as contrariedades, amarguras e ressentimentos alheios.
Se a incapacidade de trilhar outras formas de compreensão, além daquela de mão única, domina o cenário, estaremos ali simplesmente como (mais um) alvo. E de nada adiantará "ter ou não as balas". O que falarmos será desaprovado, independente do que possamos fazer. Se caminhamos por um lado, estará errado. E ao mudarmos de direção, não escaparemos do olhar desaprovador.
Não estamos ali para ser aceitos. Nem há o que fazer, a não ser observar nossa integridade física e emocional. Não nos misturarmos na loucura alheia. Tarefa árdua e exaustiva em muitos casos. Impossível em outros, infelizmente.
A loucura é feita de certezas. Quando encontrar pessoas recheadas delas, tome cuidado. A única certeza possível é a morte. Esta é incontornável. E mesmo assim, há aqueles que a entendem como uma passagem ou ainda, acreditam em outras vidas.
Afinal, o ser humano tem o direito de entender a existência como um caleidoscópio de possibilidades.
Um dos mais antigos hospitais psiquiátricos de São Paulo exibia esta frase em sua entrada principal:
"Nem todos estão aqui!".
Talvez, a maioria não esteja.
(*) Foto: Google