DOLCE VITA
INSTAGRAM: @dolcevitacontos
Capa Meu Diário Textos Áudios Perfil Livro de Visitas Contato Links
Textos

  

 

Morangos Silvestres

Ficha Técnica:

Ingmar Bergman - Diretor / Roteiro 

Allan Ekelund - Produção 

Gunnar Fischer - Fotografia 

Eric Nordgren - Trilha sonora 

Oscar Rosander - Edição

Elenco:



Victor Sjöstrom

Bibi Andersson


Ingrid Thulin


Gunnar Björnstrand


Max von Sydow



Premiações:



Oscar® (1958): 
Indicado a Melhor Roteiro Original 
 
Globo de Ouro (1959): 
Vencedor de Melhor Filme Estrangeiro 
 
British Academy (1959): 
Indicado a Melhor Filme e Ator Estrangeiro (Victor Sjöstrom) 
 
Festival de Berlim (1958): 
Vencedor do Urso de Ouro (Ingmar Bergman) e Prêmio FIPRESCI para o veterano Victor Sjöström pelo conjunto da obra 

Festival de Veneza (1959): 
Prêmio da crítica italiana (Ingmar Bergman)




Introdução

Mais uma vez, um grande filme narra uma viagem.

Em "Morangos Silvestres" esta viagem é o recurso narrativo que nos colocará na estrada de lembranças e indagações de um ser diante de sua própria trajetória.

Quem foi e o que se tornou o protagonista Isak?

O filme narra um dia na vida do velho médico e sua viagem de carro até outra cidade onde será condecorado pelo Jubileu de sua graduação. Os encontros acontecem (com a nora, os jovens que pedem carona e um casal socorrido por ele em um acidente) entrelaçados aos sonhos e lembranças de toda sua existência.

Qual o sentido dessa experiência em Isak?

Estaríamos diante de um homem que aceita olhar para dentro de si mesmo e entender o que foi e o que poderia ter sido?

A viagem de Isak seria uma travessia onde acompanhamos duas pistas e dois sentidos?

Explico.

Em uma das pistas circulam os sonhos e recordações, sua infância em uma grande família, a adolescência, o primeiro amor, as inibições, escolhas, decepções: enfim, os momentos de sua história que o marcaram e determinaram seu isolamento afetivo. Uma espécie de retirada da vida.

Na outra pista, os encontros nessa viagem seriam a possibilidade de, mesmo em falta consigo e com os outros, abrir- se aos sentidos que a vida proporciona?

A cena inicial (o pesadelo com a morte) merece um comentário à parte. No entanto, ali há um relógio sem ponteiros. A ausência dos ponteiros me despertou a atenção por não haver a necessisade de retirá-los para dar o sentido de um confronto com o fim e a morte.

Então, por que sem ponteiros?

É na ausência, a lacuna onde o vazio de uma existência pode ser recontada, que me parece definir a viagem em "duas pistas" de "Morangos Silvestres": a memória e o sentido da vida.

Um dos mais belos filmes sobre as nuances da existência. Todas elas.


Análise

Tela negra. Ouvimos o som da batida de um sino, provavelmente de uma catedral. A primeira marca do tempo. E a tela agora se abre para o interior de um escritório, onde está o protagonista de "Morangos Silvestres", Professor Isak, e seu cachorro.

Ele escreve:

Nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isto que me afastou, por vontade própria, de toda vida social e tornou minha velhice solitária”.

Isak é médico, completou 76 anos e prepara-se para receber uma homenagem em outra cidade.

Esta viagem é precedida por um pesadelo. Ele sonha que está em uma parte desconhecida da cidade, onde as ruas são desertas e as casas em ruínas. Olha para um grande relógio sem ponteiros. Pensa ter encontrado alguém em uma calçada. Ao se aproximar, a figura parece desmanchar-se ao chão. O sangue escorre.

Um coche traz um caixão por uma rua estreita. Isak acompanha os cavalos se aproximarem, sem condutor. Uma das rodas bate em um poste de iluminação, se desprende e desliza em sua direção. Ele tenta desviar e aproxima-se do caixão, caído do carro fúnebre, na rua.

O caixão está aberto. Isak vê a mão que tenta puxá-lo. Olha para si mesmo. Ele está morto.

Podemos entender esse pesadelo literalmente? Claro.

Podemos ir além e mergulhar nos sentidos simbólicos? Penso que sim. E é nessa trilha que seguirá minha interpretação.

Imagine que Isak tenha sonhado, não com a morte literalmente e o sentido natural na sua idade, mas com a sua própria morte durante os longos anos de sua existência.

É assim que interpreto o pesadelo de Isak. Seu inconsciente (a parte desconhecida da cidade) mostra o relógio sem ponteiros (o tempo não vivido) de sua existência. O vazio. A lacuna. E por isso não há ponteiros.


Para representar o confronto com o fim (tempo encerrado) seria muito mais simples colocar um relógio com os ponteiros parados. Isso nos levaria direto à interpretação de mão única: a proximidade da morte literal.

Muito antes de pensar em morte literal, "Morangos Silvestres" disseca a alma de Isak e suas mortes ao longo da vida. Um homem repleto de inibições, embotamentos afetivos, ressentimentos, fechado em si mesmo. Isak é um homem morto em vida.

Os encontros que esta viagem oferece fará Isak entrar em contato consigo mesmo. E com suas mortes diárias ao longo de sua existência. Suas clausuras afetivas, a recusa em dar e receber amor, uma vez que é um ressentido. Sara, seu primeiro amor, casou-se com seu irmão.

Isak era um jovem sensível, mas repleto de escrúpulos. Beijava no escuro, como dizia Sara. Enquanto o irmão, Sigfrid, excitante, entendia o jogo da sedução amorosa e provocava Sara. O que a fazia sentir-se viva por ser desejada "à luz do dia".

A repressão acontece por várias vias. A religião é apenas uma delas. Padrões rígidos de comportamento podem encontram naturezas mais fechadas e as amarras em volta do eu acontecem. O mundo interno torna-se um emaranhado de nós erguidos com a função de proteger-se dos próprios impulsos e desejos, por um lado. E também como barreira para o outro, capaz de ameaçar com uma possível rejeição ou julgamento desaprovador sobre sua conduta.

A histeria, tão estudada pelo pai do psicanálise, retrata a época vitoriana, final do século XIX, onde a repressão era devastadora. E tudo aquilo que não podia ser expressado naturalmente, tornava-se sintoma físico.

Durante a viagem de carro até Lund, Isak e sua nora, Mariane, oferecem carona a um casal. Eles se ridicularizam o tempo todo. O marido diz que a esposa é histérica e "enganou" os médicos apresentando sintomas relacionados ao câncer, sem que fosse descoberta nenhuma anomalia que explicasse o quadro sintomático. Por ser católico, dizia "suportar" tudo aquilo.

No entanto, apesar das devidas "justificativas", o casal não consegue deter a hostilidade. Estavam atados pelo ressentimento. Um contra o outro. E provavelmente, tamanha distorção passa a conferir o sentido perverso da relação. E então já dependem daquilo para viver. Criam um inferno e assim, não se responsabilizam por seus atos contra suas próprias vidas. A "culpa" está na doença. Ou talvez, nos "pecados". E a cada dia, morrem um pouco.

Essa viagem entremeada de sonhos e encontros, reservaria ainda outro sonho significativo.

Isak sonha com Sara. Ela segura um espelho (o símbolo do confronto com suas inibições e por isso qualificadas como "humilhantes" por ele). E esse olhar, apesar de doloroso, liberta ao retirar os véus que impedem o ser humano de entender-se e entrar em contato com a sua verdade.


Esse é o olhar consciente. O conhecimento daquilo que se é. Sara e ele não falam a mesma língua. Isak
"já era um velho" quando a conheceu. Este é o sentido simbólico (e não literal) da frase:

"Você é um velho assustado que logo vai morrer enquanto eu tenho uma vida pela frente".

Esta "velhice" representa a inibição e a repressão da personalidade do médico. Não havia muito espaço para a vida, afetividade e desejos ali. Por isso, logo ele "morreria" por não permitir o contato consigo mesmo, nem com o outro. Este isolamento afetivo, se configuraria em egoísmo e frieza.

No sonho, logo em seguida ao diálogo com o espelho, Sara segue em direção ao berço onde o filho de Sigfrid chora. Ela o carrega no colo. E o protege. Fala amorosamente com a criança. Desempenha o papel da mãe que nutre e está presente, levando segurança ao bebê. Depois disso, entra em casa, onde encontrará Sigfrid, que a beija na nuca e na boca. Sinais de uma relação entre um homem e uma mulher que se desejam.

Isak olha para o berço vazio. Não teve, nem soube o que era essa ligação próxima e afetiva com sua mãe. Uma mulher considerada, por sua nora, mais fria que a própria morte.

O sonho prossegue. A casa onde estaria Sara, transforma-se em um lugar onde Isak é recebido por um inspetor. O sentido simbólico aqui, mais uma vez, seria o de entender os motivos que o condenaram a tanta solidão.


Sua mulher relacionou-se com outro homem. E Isak parece oscilar entre aquele que sentirá pena da mulher, ou se colocaria em um patamar superior, como se não houvesse nada a perdoar (e é preciso aprender a perdoar e a ser perdoado). O jogo que se estabelece em termos de culpas (e nunca de responsabilidades pela vida que se escolhe ter). E o diagnóstico da esposa:
"ele não se importa com nada. É frio como gelo".

Ao voltar desse sonho, no carro ao lado de Mariane, Isak, pela primeira vez é delicado com sua nora e diz que ela pode fumar, se desejar ( no início da viagem há um diálogo franco entre eles e essa cena adquire um significado importante). E conta o que pensa sobre seus sonhos:

"Parece que quero me dizer algo que não desejo ouvir acordado: que estou morto apesar de vivo."

Mariane diz que seu filho Edvald é idêntico ao pai e disse a ela a mesma coisa, aos 38 anos de idade.

A nora conta a passagem em que ela comunica a gravidez a Edvald e este diz que ela deve escolher entre ele ou o bebê.

Edvald é outro ser ressentido com a vida. Imagina-se como o fruto indesejado de um casamento infernal. Mistura e confunde seu valor ao temor infantil. E passar a viver a mesma reclusão afetiva de seu pai. Ou seja, está à espera da morte literal porque vive a simbólica.

Ao se dar conta (conscientizar-se) da solidão imposta a si e aos outros, Isak entende o que fez. E oferece ajuda à Mariane, declara gostar dela, tenta dialogar com o filho e se aproximar amistosamente da empregada que o acompanha há anos.

A cena final é simplesmente deslumbrante. O reencontro possível com o sentido para toda uma existência.

A viagem de Isak em "Morangos Silvestres" pode ser comparada ao processo analítico.

Faremos a mesma trajetória. As idéias sobre o que pensamos ser são desconstruídas ("morte" em um certo sentido) para dar lugar ao que realmente somos e podemos, de fato, ser.

(*) Imagem: Google

http://www.dolcevita.prosaeverso.net


 

 
Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 01/06/2009
Alterado em 02/06/2009
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Comentários