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O SEGUNDO DEGRAU
Ana imaginou a cena milhares de vezes como em um filme que, a cada instante, mostra um enredo diferente. Naquela noite, uma das possibilidades seria contada. Restava descobrir qual delas.
A varanda de madeira circundava a casa. Ele estaria sentado em um dos degraus da escada de pedra. O portão de ferro não era problema. Estava destrancado e ela entraria afoita. Após a longa espera, sentiria vontade de correr.
A cada passo sua alegria desenhava o nome dele no chão. Quis gritar enquanto uma pequena curva no caminho ainda o escondia de seus olhos. Seguia repetindo para si mesma a semelhança da palavra e do nome: Luís… Luz.
O mundo pode ser um detalhe para quem ama em silêncio. Tentou não pensar na distância nem na possibilidade de estar equivocada. Agarrou-se ao instinto para guiá-la por um caminho desconhecido.
O cenário e o personagem contrariaram a versão idealizada. Luís não estava sentado na escada, mas parado na porta principal da varanda. Fez um sinal indicando que ela subisse. Para ele, o tempo havia passado. Ana começou a subir e, no segundo degrau, perguntou:
- Podemos sentar aqui?
- Mais uma vez, no meio do caminho, Ana? Venha. Suba!
Acomodada no degrau, sorriu e determinou em tom infantil:
- Vamos ficar aqui!
Luís desceu e sentou-se ao seu lado. Se não fosse do jeito dela, teriam uma longa noite. A presença tão próxima a fez sentir um perfume diferente:
- Você fez a barba!
Luís riu enquanto ela o estranhava:
- Que mudança!
- Ana, apenas você não muda! Só você!
Ela detestava admitir, mas Luís estava com a razão.
- Você me conhece. Não tenho defesa.
- Não me subestime. Você é mestra em se defender. Sou vítima e testemunha de sua especialidade.
Ana lembrou-se dos anos em que recusou todos os convites para se reencontrarem. Luís havia transformado uma paixão improvável em algo possível. E quis estar com ela de outras formas.
A pergunta dela o surpreendeu:
- Por que me recusei a te encontrar antes?
- E você pergunta isto justamente para mim?
- Ah! Eu não podia. Você sabe disto. Seria injusto comigo.
Luís esboçou um sorriso:
- Seu conceito de justiça é singular. Não te causou o menor problema ser injusta comigo.
- Não pense que é um privilégio apenas teu. Você não sabe o quanto me custou.
- É verdade. Não sei. Não leio pensamentos, Ana. Nem sentimentos. Prefiro quem os expressa.
- Por isso você é melhor do que eu. E talvez, também por isso, não me quis mais.
- Ana, eu recuei. Mudei de idéia. Tive minhas razões. Você nunca entendeu e por isto se manteve nesta posição no meio da escada que estamos agora.
- Meio da escada?
- Você não recua nem avança. Haveria formas menos elegantes de dizer isto, mas você merece minha sutileza.
Luís sorria e ela sem graça rebateu:
- Apesar de todas as minhas recusas em te ver, das dificuldades para me posicionar no começo ou no fim desta escada, você continua sendo a única pessoa a quem procuro. E você sabe que sou capaz desta idiotice.
Ele brincou:
- Qual idiotice? Me procurar ou ter em mim a única pessoa que você busca?
- Em qual delas me supero?
- Não vou responder a isto.
Ela insistiu:
- Mas é verdade. A única pessoa que procuro é você. Muitas vezes me pergunto o que você fez ou deixou de fazer para que eu permaneça por perto.
O silêncio que Ana aprendeu a conhecer como a si mesma prolongou sua espera. Finalmente, ele disse:
- Eu nunca usaria um artifício para manter alguém na minha vida. Este é o seu problema, Ana. O estoque de artifícios sempre foram teus.
- Você está sendo severo demais comigo.
- Estou sendo franco. Você sabe o que significa na minha vida. Eu até agora não sei se sou um capricho da tua vaidade ou...
Ana interrompeu:
- Não é isso! Eu não sei explicar.
- Ninguém além de você mesma sabe o que sente. É por isso que eu recuei. Não adiantava subir esta escada sozinho enquanto você brinca no meio dela como uma criança que se recusa a crescer.
- Você está certo.
- E nem por isso, mais feliz.
Novamente sozinho, Luís subiu a escada.
(*) IMAGEM: Google
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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 22/07/2009
Alterado em 02/09/2010
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