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BATOM NO ESPELHO
Naquela noite Felipe chegou atrasado. Mariana estava no banheiro colocando batom quando ele entrou sem bater na porta. Era difícil explicar, mas haviam adquirido uma intimidade ao contrário. Quanto mais conviviam, mais cerimoniosos ficavam e por isso, aquele gesto tão natural, entre pessoas que compartilham suas vidas, a deixou intrigada:
- Estava preocupada. Você sempre avisa quando atrasa.
- Eu sei.
- É só isso que você tem a me dizer? - perguntou Mariana em tom de voz muito baixo.
- Mariana... Mariana, você sempre tão elegante! Isso não te cansa?
Por enquanto estou apenas preocupada. Se a ironia persistir, posso me entediar.
- Língua afiada. Nisso você sempre foi mestra.
Mariana buscou um tom divertido para responder:
- Decida-se, querido! Num momento sou sempre elegante. No instante seguinte, língua afiada. Não tenho a menor idéia de como seria possível conciliar as duas coisas em uma só personalidade.
Enquanto falava, escolhia o rímel dentro de seu estojo de maquiagem. Decidiu-se por um entre quatro tubos em suas mãos e emendou:
- A menos que você imagine que se casou com uma mulher de muitos temperamentos, o que tornaria praticamente nula a possibilidade do tédio ou rotina em nossas vidas – (interrompeu a fala como alguém prestes a finalizar um cálculo e concluiu) - pensando bem, acho que você deveria rever suas colocações. Não sou tão complexa assim!
Felipe tentou provocá-la:
- Eu queria ter esse teu senso agudo de observação, distanciado, como quem faz cara de paisagem: "é comigo?".
- Deu pra me invejar depois de tantos anos juntos? Um pouco tardio, não acha? - Mariana parecia começar a se divertir.
O marido, agora ao lado dela, em frente ao espelho parecia abatido:
- Quer mesmo saber como me sinto?
- Mal posso esperar para saber!
- As palavras fogem quando me aproximo de você. Sou um redator sem palavras! Estou sempre sem fôlego. Exausto. Muitas vezes me pergunto se vale a pena te dizer qualquer coisa.
Mariana passava rímel e ao ouvir o que ele dizia, borrou a pálpebra. Por um momento desviou o olhar para o marido, mas, em seguida, concentrou-se novamente em sua própria imagem. Limpou o traço borrado com precisão cirúrgica.
Felipe esforçou-se para conter a raiva e deixou que apenas sua tristeza falasse:
- Na semana passada, acordei no meio da noite. Não sei quanto tempo permaneci te observando. Teu sono parecia tão tranqüilo, tua respiração serena, mas em momento algum senti que eu olhava para uma mulher feliz e descobri que justamente isso nos unia. O mesmo sentimento de solidão ou tristeza que depois de algum tempo passa a ser quase um conforto sentir.
A esposa ouvia calada e Felipe não sabia distinguir se conseguira sua atenção ou somente aquele conhecido jeito polido que ela mantinha a maior parte do tempo. E ele completou, depois de uma pausa que pareceu uma eternidade entre eles:
- Desde aquela noite penso apenas em uma coisa. Eu queria me separar e simplesmente não consigo.
- Não estou achando a menor graça!
- Como você consegue?
- O quê agora? Que tortura! O que está havendo com você?
- Mariana, você se casou com um sujeito covarde. Apesar de tudo, não consigo mais me imaginar em outro lugar que não seja aqui. Você é muito mais forte e sempre será. E vai ganhar todas as vezes, encerrar todas as conversas...
- Isso só pode ser uma brincadeira de muito mau gosto!
- Mariana, me diz o que você vê em mim? O que te faz querer ficar comigo?
A mulher tentou brincar:
- A seco? Não dá! Vou abrir aquele tinto que ganhei do meu editor.
- Não foge! Responde! – Felipe gritava.
Mariana parou na porta e quando se deu conta disse:
- Eu sei que está tudo errado...
Ela mal conseguia acreditar no que havia acabado de dizer, mas prosseguiu, sem olhar o marido:
- Tua infelicidade não é invisível. Eu posso ver, Felipe, embora preferisse não ter visto porque dói mais quando a gente vê que não pode mudar nada. Eu sempre serei isso que você agora não ama. Não posso ser outra.
- E o que você sugere que a gente faça?
- Quer mesmo uma sugestão prática?
- Mas não é assim que os papéis aqui estão distribuídos? Você é prática. Eu, teórico. Olha só, a gente aqui falando porque eu sempre com essa mania nada masculina de discutir a relação! Você é muito mais masculina que eu. Você venceu em tudo que quis. É uma pedagoga prestigiada, seus livros recebem críticas que derreteriam até pedra! E eu? O que consegui? Não passo de um redatorzinho que deu a sorte de ter família bem relacionada! Como é que eu posso te invejar? Nem isso eu posso, Mariana! Porque se eu te invejasse ainda me restaria energia para desejar algo!
Ela sentiu vontade de abraçá-lo, mas não se moveu ao falar:
- Você está vendo tudo muito pior do que é. Qual o problema de eu ter mais sucesso ou dinheiro? Se fosse o contrário nem estaríamos aqui conversando. Seria natural, esperado e injusto. Muito injusto! Que culpa tenho de ser melhor sucedida? Por ser mulher preciso pagar o preço da infelicidade do meu homem? Se eu fosse menos realizada te faria mais feliz e nosso casamento não correria riscos?
- Não é nada disso! Você está distorcendo as coisas! Não brinca com a minha dor!
- Brincar? Brincar com a tua dor? Desde quando a gente brinca? Estamos amorfos, apagados, levando a vida. Você sabe, eu sei. Mas eu pergunto: vale a pena?
- Por que? Você acha que temos volta?
- Acho que não temos volta porque nunca teremos saída, Felipe. Só volta quem sai. E acho que nunca sairemos disso. Desse sentimento morno e seguro. Muitas vezes infeliz, mas conhecido.
- Você está nos condenando um ao outro!
- Prefere se condenar porque disseram que teria que ser diferente? Porque o homem não fala de sentimento, mulher tem que ser frágil e ganhar menos, homem não pode sentir que conseguiu menos que sua mulher. Qual o problema de você se sentir assim? Por que eu, por ser mulher, poderia sentir e você, por ser homem, não?
- Eu não acredito nisso! Só pode ser saudade das aulas de pedagogia! Isso está virando uma aula barata de antropologia, sociologia ou sei lá o quê! Pelo amor de Deus, isso é nossa vida, Mariana!
A mulher pegou o batom na bancada de mármore negra e escreveu no espelho:
- Isto é nossa vida, Felipe.
(*) Foto: Google
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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 31/07/2009
Alterado em 31/07/2009
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