DOLCE VITA
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                          A FRATERNIDADE É VERMELHA

                              Trois Couleurs: Rouge







TEXTO DEDICADO A CINEMA OLHO PELO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO






FICHA TÉCNICA


Krzysztof Kieslowski - Direção / Roteiro 
Yvon Crenn, Marin Karmitz, Jean-Louis Porchet, Gérard Ruey - Produção 
Krzysztof Piesiewicz - Roteiro 
Piotr Sobocinski - Fotografia 
Zbigniew Preisner - Trilha Sonora 
Jacques Witta - Edição 
Claude Lenoir - Desenho de Produção 
Corrine Jorry - Figurino 
William Flageollet, Jean-Claude Laureux, Brigitte Taillandier – Som



Elenco: Irène Jacob (Valentine), Jean-Louis Trintignant (Juiz), Frédérique Feder (Karin), Jean-Pierre Lorit (Auguste), Samuel Le Bihen (Fotógrafo), Marion Stalens (Veterinário), Teco Celio (Barman), Jean Schlegel (Vizinho), Juliette Binoche (Julie), Julie Delpy (Dominique).
 

 
 
 
 
Sinopse:

Valentine é uma jovem modelo que vive em Genebra. Certo dia, atropela uma cachorrinha e, preocupada, sai em busca de seu dono. Assim, conhece o homem que mudará a sua vida: um juiz aposentado que passa os dias espionando as conversas telefônicas de seus vizinhos.

 
Depoimento de Kielowski:
 
"Particularmente em “A Fraternidade é Vermelha” queríamos que o espectador pensasse de modo retrospectivo, que ele fizesse uma associação entre as coisas que já vira sem notá-las. Por exemplo, na cena em que a cadela entra na igreja. Alguns minutos antes a personagem Valentine estava ali, naquele mesmo lugar, bebendo água mineral, cansada depois da ginástica.

Nós tentamos acumular esses sinais para que o espectador pudesse perceber que está vendo algo que já viu e registrou em algum lugar do subconsciente. Muitos desses sinais não chegam a ele, é evidente, mas se os acumulamos é para que alguns cheguem a ele e compreendam a regra.

Outro exemplo simples: quando Valentine entende que não achará a cadela.
Ela tem claramente uma idéia, mas não sabemos que idéia é essa, mas sabemos que esse é o caminho para a casa do juiz. A câmera está no mesmo lugar da primeira vez que ela foi lá. Era noite e agora é dia, mas o espectador se dá conta que é o caminho.

A cadela é o imã que determina o encontro entre os dois. A partir desse momento Valentine se ligará a esse juiz por causa do modo como ele se comporta em relação a ela e ao que a cerca, por causa do que ele espiona por telefone, do que ele sabe e do modo que ele encara a vida. Ela cairá em uma armadilha que mais tarde não parecerá uma armadilha.”
 
 


INTERPRETAÇÃO


 

“O encontro de duas personalidades é como o contato de duas
substâncias químicas. Se houver reação, ambas se transformam.”

- Carl Gustav Jung


 
“- Decidir de que lado está a verdade é falta de modéstia."
“- Quero fazer algo.”
“- Seja
.”
 
Escolhi estas frases para falar que é impossível escrever com justiça sobre “A Fraternidade é Vermelha”.  Seu diretor decidiu parar de filmar depois dessa obra, provavelmente por ter entendido que não conseguiria dizer nada além, ou melhor. 

Seria modéstia?

Seria verdade?

Mais uma vez, assim como escrevi em "A Liberdade é Azul" a câmera é um personagem narrador. E o sentido do olhar (voyeur) parece traduzir o impacto da experiência.

A Fraternidade é Vermelha narra o encontro (e o confronto) entre duas forças: o encanto da esperança de Valentine e a experiência desiludida de um juiz aposentado.

Talvez, o tom vermelho no carro, no fundo de uma fotografia e em outros elementos cênicos seja tão vibrante para exaltar o interior muitas vezes, caótico, do ser humano.


Valentine é uma jovem com uma vida a ser construída. Uma pessoa correta e de boa fé, no entanto, suas relações nunca aparecem a não ser via jornal ou telefone (mãe, namorado e irmão). Ela não demonstra claramente a tensão de certas situações que a cercam: o irmão se droga desde que descobriu ser filho de outro homem, a mãe que a preocupa, o namorado ausente e controlador. No entanto, sua vida segue como se não se deixasse paralisar pelo drama à sua volta.

Auguste é o jovem juiz, apaixonado por uma mulher dois anos mais velha que o trairá. E ele descobre a traição espionando.

Ao lado desses dois universos, que apesar de conviverem geograficamente próximos, ironicamente se cruzarão apenas no final da história, o acaso promove um encontro improvável. A única relação que acompanharemos ao longo do filme se estabelecerá entre Valentine e o juiz aposentado, ao atropelar acidentalmente sua cadela Rita.

Valentine será confrontada pelo juiz e através de sua visão da vida entenderá que muitas de suas ações não passam apenas pelo desejo de fazer as coisas certas ou apresentar valores definidos. O juiz mostrará a ela que a verdade é uma questão muito mais ampla, complexa e muitas vezes fugidia.

Decidir de que lado está a verdade é uma mera questão de vaidade. Nem sempre nossas ações são determinadas pelo desejo de fazer o bem ou impedir o mal, mas de estabelecer uma zona de conforto com a própria consciência. E então percebemos que estamos centrados mais em nós mesmos no que no bem ao próximo.

O juiz mostrará a Valentine que a única coisa que realmente pode fazer em relação às situações que a cercam é ser. Valentine pergunta o que ele quer dizer com isso e o juiz novamente responde: ser.

O sentido do ser que se descobre reflexivo, humanizado e possível se dará quando a esperança suavizar o desencanto do juiz aposentado e a experiência amadurecer Valentine.  E é isso que acompanhamos durante esse encontro. A transformação que um proporciona ao outro.

Tudo que é narrado pelo juiz aposentado em sua biografia (o amor por uma mulher que o traiu), acontece na vida de Auguste, o juiz mais jovem.
Podemos supor que a vida de Auguste se repetiria, exatamente como aconteceu com o aposentado, caso um encontro não tivesse modificado tudo. E esse encontro é possibilitado para ambos, em certo sentido, através de Valentine.

Há quem interprete poeticamente o futuro do jovem juiz, reescrito através do presente do juiz aposentado. Ao denunciar-se à polícia ele cria a circunstância do encontro que possibilitará a traição da mulher mais velha que namorava Auguste. A partir daí, então, o jovem juiz estaria “livre” para encontrar Valentine.

Este encontro é marcado novamente pela fatalidade do acaso e o fio do sentido resiste na esperança que marca a alma dos sobreviventes de um naufrágio (personagens da trilogia das cores) ligados à vida (e pela vida).
E assim permitem que suas trajetórias sejam modificadas ao se abrirem e se comunicarem através dos encontros.

Há um universo a ser dito nesse filme. Uma obra-prima que muitas vezes lembra um poema. A repetição da imagem de Valentine (na propaganda e no naufrágio) e os personagens sobreviventes me parecem um dos mais belos recursos cinematográficos na arquitetura de uma história.

Talvez, depois disso, a decisão de não filmar mais até faça sentido. Entretanto, sobre a obra haverá sempre o que dizer, pensar e refletir.





(*) IMAGEM: Google

http://www.dolcevita.prosaeverso.net
 

Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 03/09/2009
Alterado em 04/09/2009
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