O trem para Viena saiu da estação às cinco horas da tarde. Na cabine, além do Dr. Godofredo Bauer, havia um homem franzino, sentado à janela. Ao passarem pelo primeiro túnel, o estranho rompeu o silêncio:
— Eu sou uma caixa.
A repentina declaração não impressionou o psiquiatra. Godofredo estava acostumado a lidar com os mais inusitados delírios. Diante do silêncio do médico, o homem discorreu sobre a própria vida. Pertencia a uma linhagem de caixas nobres, cuja fama havia percorrido toda a Europa, aumentando ainda mais seu infortúnio. Enquanto seus parentes respiravam ares de pura sofisticação, ele caía sempre nas mãos de pessoas grosseiras. Era uma caixa incompreendida. Vivia infeliz.
Lembrou-se do tempo em que sonhara guardar apenas coisas interessantes. Doce ilusão. Aquela gente sem modos — e gosto duvidoso — o enchera de bugigangas. Seu interior parecia assombrado por objetos ridículos. Num gesto desesperado, pediu ajuda aos deuses, mas as divindades não dispunham de tempo para orientar caixas ávidas por beleza.
Àquela altura, o intrigante relato do homem franzino levara Godofredo a imaginar-se uma caixa repleta de histórias que, muitas vezes, não eram suas, mas viviam ali dentro dele. Dedicado à carreira psiquiátrica, nunca cedera à vontade de escrever um livro para dar voz aos personagens que cismavam em soprar suas vidas em sonhos, imagens, e até mesmo no meio da rua. O médico olhava agora fixamente para o homem na cabine. Seria ele também um personagem?
O estranho soltou um longo suspiro antes de admitir que finalmente aceitara seu destino. Nunca seria uma deslumbrante caixa de presente nem mesmo uma caixinha surpresa. Sobrara o papelão. Godofredo, que ouvira atento todo o caso, permaneceu calado. Talvez tudo que pudesse fazer pelo tal homem-caixa fosse ouvi-lo. E quem sabe, um dia, escrevesse sua história.
(*) IMAGEM: Google
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