O quarto de Felipe era o caos: a bagunça dominava todos os cantos. Naquela manhã, ele acordou ao ouvir uma voz feminina, muito parecida com a de Camila, sua ex-namorada — só que com um leve toque de rouquidão — vinda do rádio:
— Felipe! Olha o sol radiante lá fora e você aí nesse quarto. Tá pensando que é um morcego?
A luz escapava pelas frestas da janela, desenhando riscos brilhantes na parede. Enquanto Felipe observava as linhas pontilhadas, levou outro susto: seu nome acabara de surgir ali.
Nesse instante, a voz do rádio disse:
— Será que eu preciso desenhar?
Camila costumava usar essa expressão quando queria que Felipe entendesse algo ou tomasse uma atitude. Tudo parecia estranho demais para ser real. Talvez por isso ele imaginasse que logo acordaria e riria do sonho.
Mas a voz insistiu:
— O sonho acabou. Não caiu a ficha, Felipe?
A voz era idêntica à dela. Soava como se Camila o sacudisse pelos ombros, como fizera tantas vezes.
Durante a relação, Felipe foi deixando de ser o sujeito alegre e divertido para se tornar alguém displicente e desanimado. Talvez por causa da distância entre os dois: Camila era rica, bem-sucedida, ganhava dez vezes mais. Felipe vinha de outra realidade, preso a um emprego sem futuro. Olhar para a vida dela era como espiar um mundo ao qual jamais pertenceria. Mas será que esse Felipe, ressentido com suas limitações, já existia antes de Camila?
Como se pudesse ler seus pensamentos, a voz voltou a soar, rouca:
— Onde foi parar o Felipe de antes?
A pergunta martelava sua mente. Ele se ouviu dizendo:
— Mas quem sou eu? Esse? O de antes? Os dois?
A voz respondeu:
— Hoje talvez você não queira mais ser nenhum deles. Nem o que foi lá atrás, nem esse de agora. E então, finalmente, arranque suas máscaras pra se descobrir. Nesse dia, você saberá quem é o Felipe. Quem é você de verdade.
Ele olhou para o único quadro pendurado no quarto: as máscaras do teatro. A que ri era o Felipe de ontem. A que chora, o de hoje.
A voz concluiu:
— Sua verdade sempre esteve em um só lugar: nem lá, nem cá. Mas dentro de você.
O som de uma freada brusca, seguido de uma buzina estridente, o despertou. Ao seu lado, na cama, Camila ria:
— Você sonhou comigo? Disse meu nome três vezes.
Felipe já não sabia o que estava acontecendo. Era como acordar dentro de outro sonho. Mas, aos poucos, a consciência foi voltando:
— Eu sonhei que era ferrado na vida. E você era minha ex. Eu tinha muitos problemas e ressentimentos com a nossa relação. E o rádio falava comigo com a sua voz.
Camila soltou uma gargalhada.
— Felipe, fala sério! Nosso maior problema até hoje foi decidir se a gente passava as férias na Suíça ou no Japão.
Felipe riu. Mas algo dentro dele não achou a menor graça.
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